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Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Enterrados no Jardim
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  • Uma boca com dentes de diferentes épocas. Conversa com Liliana Coutinho
    Noite insular, jardins invisíveis, imagens desgarradas e fendas por entre as quais ainda toca a alguns espreitar essa luz que dança reconciliando o homem com os seus deuses desdenhosos. Nas imagens possíveis traçadas pelo poeta cubano José Lezama Lima está o germe das suas eras imaginárias, de um outro tempo, feito de vincos, simetrias diamantinas, precipitações inesperadas, cortes, colagens. Estamos no âmbito de “um tempo não encarnado, o tempo que não fez História sobre a terra”. É aquilo a que ele chama “o tempo poemático, forma subtil de resistir sem fazer história”. Assim, em seu entender, a poesia gera uma temporalidade diferente, fruto da rebeldia do poeta que se nega a converter-se em matéria histórica e em pasto do sucessivo, mas é também fruto dessa recusa em acatar apenas uma versão das coisas, preferindo pôr-se a manejá-la, abrindo o tempo, trabalhando num compasso em que esta está sujeita aos próprios abalos de um mundo exterior convulso. Se este tempo poemático não marca a terra ou o homem com as dolorosas cicatrizes do tempo histórico, não deixa de fornecer uma síntese que se pode encarar no espelho, construindo a seu modo uma resistência, sendo “uma das mais poderosas redes que o homem possui para capturar o fugaz e para o animismo do inerte”. Seguimos a leitura de Abel E. Prieto, ex-ministro da Cultura cubano, um político que escreve ensaios sobre poesia e que com Lezama Lima aprendeu esse modo de investigar os grandes e pequenos afluentes da utopia e o seu transporte confuso. Ele diz-nos que se pode fazer um jogo mágico valendo-se de personagens e momentos históricos, desviando-os deliberadamente, combinando livremente as peças dessa História que nos deixou tanta pele cicatrizada, como se nos permitíssemos reabrir as feridas, explorando enlaces ocultos, dando assim espaço à formação de uma história convulsiva, e que, se não encarnou, mesmo assim foi capaz de despertar um movimento, sugerir uma perspectiva secreta, a qual persiste e vai “alcançando a sua infinitude ou absurdo criador ao diluir-se no banco de areia do tempo”. Prieto diz-nos que esta supra-história poética coloca de novo em campo extensões do tempo que foram esquecidas, que não puderam configurar-se, mas foram destruídas, e este esforço passa então por justapor aquilo que não chegou a realizar-se classicamente. Esta subversão das hierarquias é decisiva ao pensamento descolonizador de Lezama Lima, entendendo que não há porque se outorgar uma proeminência castigadora às etapas conclusas da história que se realizou, essas etapas que cumpriram o seu ciclo, nem nos limitarmos a ir buscar a estas as suas categorias gerais. Pelo contrário, o esforço passa por ir mais longe, até às insólitas fronteiras dessa história que não chegou a cumprir-se, a história possível, e mergulhar nesse jogo de infinitas possibilidades tentando perceber como as situações imaginadas engendram uma lógica de germinação que não perde valor nem cede pelo simples facto de viver à margem da história orgânica e poderosa. Neste sentido, para Lezama Lima, para se alcançar uma visão superior do processo histórico, deve propiciar-se a cópula entre a História e a Poesia. Algo de semelhante a isto é o que nos diz Musil nas páginas do seu grande romance inacabado… “Ora, se existe um sentido de realidade (…) então também tem de haver qualquer coisa a que possamos chamar o sentido de possibilidade. (…) Assim, poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, não dando mais importância àquilo que é do que àquilo que não é.” Fazendo saltos, se podemos projectar-nos no terreno tão instável do futuro, não é menos instigante reaver o passado como matéria para uma espécie de revisionismo convulsivo, sem receio de raiar o absurdo. E se se costuma dizer que estes métodos, e mesmo os próprios sonhos, são para aqueles que não conseguem aguentar a realidade, que não são suficientemente fortes para estar à altura dela, Slavoj Žižek faz uma inversão que acaba assim: “a realidade é para aqueles que não parecem suficientemente fortes para confrontarem os seus sonhos”. Para Ursula K. Le Guin viver no mundo real é muito mais do que estar imerso na realidade, e, na verdade, aquilo que nos exige a responsabilidade pelos nossos actos e sentimentos é uma imensa culpabilidade, pois se há tantas vidas-pleonasmo, ou paráfrases, elipses, sarcasmos, também há outras que, não podendo mudar o mundo nem determinar o acordo de vontades ao seu redor, derramam a sua frustração e aproveitam-se da imaginação para gerar essas sombras desertoras, reinos que ficam para aqueles que deram meia volta, não se ficaram à superfície da realidade… Não aceitaram da língua nem da pressa a injunção de uma obrigação de falar, fazê-lo mesmo que atabalhoadamente, representando-se a si ou aos outros através daquelas categorias gerais que tudo degradam, mas preferiram deixar as palavras habituais, aceitar o silêncio, até que algo de novo apareça, com a possibilidade de que esse algo de novo traga novos modos de nos relacionarmos. Neste episódio, e para seguirmos no encalço de Le Guin, nas suas explorações e nas cópulas que ela foi gerando entre as mitologias e a história, a ficção-científica e a poesia, nessa alforria dos géneros e com um ímpeto de constante e subtil subversão, contámos com a orientação de Liliana Coutinho. Curadora e programadora de Debates e Conferências da Culturgest, partimos do ensaio com que nos apresenta à obra da escritora norte-americana no segundo volume de contos que dela se publicaram entre nós, “Ela Tira-lhes Os Nomes e outros contos”, uma edição da Barricada de Livros.
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    3:48:38
  • A vingança dos excluídos da poesia. Uma conversa com Cíntia Gil
    Na contradição entre o tempo que passa e a eternidade que perdura, não devemos desapontar aqueles que nos procuram para nos encher de ouro a boca, vindos com outro balanço e outra razão, e que tantas vezes aproveitam algum enredo tempestuoso, sendo certo, como notou Borges, que a chuva é uma coisa que sem dúvida ocorre no passado. Devemos então definir uma resistência a partir desse espanto de que o tempo, a nossa substância, possa ser partilhado. Contra a obscenidade da evidência, e o próprio mundo, que hoje não parece existir senão em função da publicidade que lhe pode ser feita num outro mundo, o cinema propõe-se como uma arte da exploração do tempo, sendo capaz de reinstaurar o presente, e procura, assim, superar as imagens que não estão já do lado da verdade dialéctica do "ver" e do "mostrar", mas que se passaram inteiramente para o lado da promoção e da publicidade, ou seja, do poder. "O nosso trabalho será mostrar como os indivíduos, reunidos como povos na escuridão, punham a arder o seu imaginário para aquecer o seu real", escreve Godard, exaltando a era do cinema mudo. "E como acabaram por deixar apagar a chama ao ritmo das conquistas sociais, contentando-se em mantê-la em lume brando – é então o cinema sonoro e a televisão num canto da sala." Baudrillard espantou-se com essa espécie de fantasmagoria técnica, esse ritual de protecção daqueles que buscam por todos os meios afastar o silêncio e a noite, num receio de virem à superfície de si mesmos, e fala-nos da "televisão programada vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, e que muitas vezes funciona de uma forma alucinante nas salas vazias da casa ou nos quartos de hotel por ocupar". Dá o exemplo dessa sinistra espectralidade que encontrou em hotéis de beira de estrada por toda a América, e de um cujas "cortinas estavam rasgadas, a água cortada, as portas a bater; mas no ecrã fluorescente de cada quarto o locutor descrevia a subida da nave espacial". E depois acrescenta: "Nada há de mais misterioso do que uma televisão a funcionar num quarto vazio, é bastante mais estranho do que um homem a falar sozinho ou uma mulher a sonhar em frente das caçarolas. Dir-se-ia que outro planeta nos fala, de repente a televisão revela-se pelo que é: vídeo de um outro mundo, não se dirigindo no fundo a ninguém, libertando indiferentemente as suas imagens, e indiferente às suas próprias mensagens (é facilmente imaginável a funcionar ainda depois do desaparecimento do homem)." Num mundo sem as investigações e o labor que são próprios do cinema, das artes que resistem ao abandono da substância temporal, essas sínteses, cortes, montagens e extensões dolorosas que constituem um modo de fazer o seu próprio atraso, para se "refazer" e para se fazer, como nos diz Serge Daney, num mundo em que não somos já capazes de mostrar o acontecimento a suceder enquanto acontecimento, o real torna-se apenas essa indústria de tudo o que nos escapa, continuando a engrossar os elementos alucinatórios e a trivialidade das fantasias que nos atravessam e degradam todo o processo de consciência. Assim, estamos absorvidos num loop de uma realidade que, na forma como abunda em reflexos e em interpolações, estende uma distância intransponível, esse desfasamento que produz o fantasma. "Hoje em dia, nenhuma performance pode prescindir de um ecrã de controlo não para se ver ou para se reflectir, como a distância e a magia do espelho, não: como refracção instantânea e em profundidade", assinala Baudrillard. "O vídeo, em toda a parte, serve apenas para isso: ecrã de refracção extática que já não tem nada da imagem, da cena ou da teatralidade tradicional, que já não serve de modo algum para jogo ou para contemplação, serve para se estar ligado a si próprio. Sem esta ligação circular, sem esta rede breve e instantânea que um cérebro, um objecto, um acontecimento, um discurso criam ligando-se a si próprios, sem este vídeo perpétuo, nada tem hoje sentido. O estádio vídeo substituiu o estádio do espelho." Todas as ligações se destinam a conduzir uma energia que possa alastrar superficialmente, e isto a um ponto tal que os ecrãs estabelecem uma cadeia de reflexos ininterrupta, congelandoa realidade, não ficando dependente do acontecimento, substituindo-o ao gerar esse imenso circuito que já não se deixará demover do seu frenesim constante e que alcança uma des-sublimação espectacular de todos os nexos, das causas e até do próprio pensamento. Trata-se de um abandono da corporeidade, dos limites e das tensões físicas, da relação biológica, instaurando um tempo sem tempo, que já não obedece aos ciclos da mortalidade e regeneração. Assim, os pólos e as oposições dissolvem-se e o que força esse efeito de design total, que apaga qualquer atrito ou resistência, é a lógica da ligação. "Não se trata de ser, nem mesmo de ter um corpo, mas de estar ligado ao próprio corpo. Ligado ao sexo, ligado ao próprio desejo. Conectados às próprias funções como a diferença de energia ou a ecrãs vídeo. Hedonismo em ligação directa: o corpo é um enredo cuja curiosa melopeia higienista corre entre os inumeráveis estúdios de reculturação, de musculação, de estimulação e de simulação que vão de Venice a Tupanga Canyon, e que descrevem uma obsessão colectiva e assexuada." Neste quadro de elisões que se concertam, a própria relação sexual torna-se um ritual arcaico, uma relíquia de um mundo em que as tensões ainda se definiam pelo gozo que se tirava em provar a diferença que se encontrava no outro, no campo do desconhecido. Num mundo em que tudo se converte ao mesmo, o circuito já não tropeça, não falha. E isto, num plano íntimo, acaba po corresponder a esse desejo de afastar toda a dor, todo o embate entre modos ou "ficções" defendidas por esse diferencial energético. "Houve um tempo em que as coisas levavam tempo para existir, através de processos lentos, penosos, dolorosos: era preciso tempo para construir, e esse tempo tinha valor", nota Daney. Mas hoje, pelo contrário, a urgência vai no sentido de alcançar imediatamente os benefícios, e isto significa destruir o campo artístico na sua capacidade de reaver um acontecimento, apossar-se dele por meio de uma linguagem, reapreciá-lo, produzir uma transformação do sentido. Há um princípio de sobrevivência que, ao ser levado a um extremo, põe em causa até o real, aplanando tudo. Baudrillard rejeita inscrever todo este fenómeno como expansão narcísica, alertando para o erro de se abusar deste termo na definição deste tipo de efeitos. "Não é um imaginário narcísico que se desenvolve em torno do vídeo ou da estéreo-cultura, é um efeito de auto-referência ilimitada, é um curto-circuito que liga imediatamente o mesmo ao mesmo, e portanto sublinha simultaneamente a sua intensidade à superfície e a sua insignificância em profundidade." Neste episódio, e no rescaldo de mais uma edição do DocLisboa, Cíntia Gil fez uma acostagem corsária para nos ajudar a encontrar um fio e uma razão mais funda nesse esforço de densificação do real que o cinema assume enquanto um dos seus processos de forma a integrar em nós o mundo enquanto experiência. Tendo dirigido aquele festival de cinema entre 2012 e 2019, esta programadora continua a reclamar esse papel de quem engendra e articula percursos como um modo de intervir e fazer cinema, procurando refundar um espaço crítico, que indaga e desassossega, precisamente para que o tempo possa ser reclamado de novo como essa substância difícil e que, mais do que ligações, nos fornece as possibilidades de resgatar a presença e essa zona activa, comum.
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    4:35:12
  • No funeral dos franco-atiradores. Uma conversa com José Soeiro
    Os nossos instrumentos de trabalho são a humilhação e a angústia, cada vez mais aperfeiçoadas, submetidos como somos a cada dia a rituais de aviltamento empregados para quebrar qualquer vontade de resistência. O cerco tornou-se especialmente cruel a partir do momento em que se concentrou em produzir uma fissura e assaltar-nos moralmente, espalhando em nós esse veneno obsidiante que é o medo, armado de uma ideia todo-poderosa que se limita a compor algo que se assemelha a uma política paranóica. Com a influência cada vez mais forte do sentimento de rivalidade, a maior das nossas vulnerabilidades é anteciparmos a traição dos nossos semelhantes, não podendo contar com a firmeza do carácter, nem mesmo do nosso. Espiamo-nos cheios de suspeita, pois, como alguém notava, ao fim de décadas de anestesia democrática e de gestão dos acontecimentos, de uma série de crises concatenadas, que enfraqueceram em nós uma certa percepção abrupta do real, desvaneceu-se o sentido resistente da guerra em curso. Em nenhum dos momentos das nossas vidas conhecemos o vigor da batalha, mas atravessamos um território imerso na escória de tantos sonhos, sem vislumbrar os confins deste mundo de pó e ilusões, sendo que em nós o tempo é sentido já como agonia, pelo hábito destas vidas de empregados cada vez mais subtraídas pelo aumento do tempo de trabalho e pela perda de autonomia. Estamos dominados por esse abandono da realidade, à medida que a técnica exerce o seu poder planetário, nivelando, homogeneizando, massificando, dessacralizando, uma técnica que nos mergulha em ritmos que estendem a irrealidade. Somos tomados pelas funções automáticas, pelos gestos que nos escapam, que fazem de nós espectadores da nossa própria actividade e funções. No entender de Silvia Federici, o automatismo tem sido “o produto de uma vida de trabalho infinitamente repetitiva, uma vida ‘Sem Saída’, como a da jornada laboral das nove às cinco numa fábrica ou num escritório, em que mesmo as férias são mecanizadas e se transformam numa rotina devido ao seu tempo limitado e à sua previsibilidade”. Federici vem demonstrando como um dos principais projectos do capitalismo tem sido a transformação dos nossos corpos em máquinas de trabalho, o que significa que “a necessidade de maximizar a exploração do trabalho vivo, também por meio da criação de formas diferenciadas de trabalho e coerção, tem sido o facto que, acima de qualquer outro, tem moldado os nossos corpos na sociedade capitalista”. O pior é que corremos o risco de sermos dilacerados por uma ordem económica que tem sempre no seu horizonte este regime do pleno emprego, uma sociedade que se organizou em função da centralidade do trabalho, ainda que todos os indicadores apontem para uma tendência de redução drástica do trabalho humano, que em tantos sectores passou a ser levado a cabo com maior eficiência por máquinas. Assim, como antevia Hannah Arendt, em 1958, em A Condição Humana, “o que temos à nossa frente é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, privados da única actividade que lhes resta”. Enquanto isso, toda esta dinâmica vai impedindo que se repensem as políticas de distribuição da riqueza, promovendo um alívio desta carga punitiva do trabalho, ainda entendido na sua função redentora, reduzindo o horário laboral e distribuindo de outra forma as funções que ainda estão a cargo dos humanos. Em vez de se implementar uma redução drástica do tempo de trabalho, assegurando a todos os cidadãos os meios e recursos necessários à sua vida, estamos submetidos a uma ordem cada vez mais opressiva, beneficiando a acumulação e radicalizando um princípio de degradação daquele que se vende em troca de um salário. Assim, não só as conquistas tecnológicas e todos os avanços na automatização e na inteligência artificial não revertem no sentido de um benefício comum e de adaptações no plano da organização social e política, como cada vez mais se promove esse salário moral em que aqueles que têm emprego, vivendo exaustos e sem tempo, tomados de uma fadiga até ao limite do esgotamento, ansiedade, stress, incapazes de estabelecer fronteiras entre o trabalho e a vida, neste efeito de despersonalização e de impotência, requerem como consolo e forma de justificar todo o seu ressentimento uma possibilidade de assumir a denúncia e a perseguição àqueles que se encontram em situações de maior vulnerabilidade social e que passam a ser o alvo constante de políticas persecutórias e de ajuste de contas. Neste sentido, os sacrifícios humanos que são feitos nos nossos dias já não são pensados de forma a requerer o favor dos deuses, para apaziguar as suas fúrias, já não se entende que o sangue humano possa ser esse veículo de força vital, um tributo à altura do poder divino, mas tornou-se uma forma de saciar a própria necessidade de cada homem lidar com a sua devastação íntima lançando-a sobre outros. Assim, ao analisar as consequências da automatização, Bernard Stiegler vê uma sucessiva desintegração de todos os aspectos da vida social, sendo que a sociedade automática significa também a automatização dos espíritos e a prossecução de um modelo de irracionalidade vingativa. Deste modo, o que nos deve preocupar não é apenas o progressivo desaparecimento dos empregos, mas como a miséria crescente se irá saldar num clima de conflito difuso, em que não será possível já definir propriamente lados, mas irá gerar-se um quadro de predação e agressão constantes. Neste episódio, e para nos ajudar a reconhecer esse território cheio de paradoxos que é o mundo do trabalho, numa altura em que se preparam uma série de alterações à lei laboral no sentido de fragilizar ainda mais aquela que é já a parte fraca da equação, contámos com a orientação de José Soeiro, sociólogo e antigo deputado pelo Bloco de Esquerda, que se tem especializado na área do trabalho, precariedade e acção colectiva.
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    3:29:08
  • O manicómio mundial. Uma conversa com Patrícia Câmara
    Aos versos que tantos bolçam por aí, elevando-os a mantras e slogans de campanha, repetidos numa aleivosia alegre e acrítica, até deles só restar esse tinir irritante, essa sanha das frases motivacionais na sua correspondência mais cretina com a existência, perante esses pedaços mastigados, nauseantes, como esse que nos diz que “o poema ensina a cair”, temos vontade de responder: mas e se deixa de haver chão? E se ninguém tem sequer a oportunidade de se estatelar propriamente, e, por isso, também já ninguém se levanta? E se a queda se tornou um estado constante, gerando uma resposta nervosa, uma coreografia patética, uma indiferença em que tudo vale o mesmo? Com a morte de toda a mediação, para quê insistir em categorias como a de poesia? Face a um enredo que tudo dilui, em que se rejeita todo o crivo crítico pelo risco de que este possa melindrar uns quantos, deixar alguns desamparados, desfazendo-lhes as ilusões, muitos preferem esta meia-cultura com as suas suposições ociosas, a sua função piedosa, o seu constante logro. A todo o momento, cada ser suplica aos demais que não ofendam a sua precária composição espasmódica, esse carrinho de supermercado onde recolhe quinquilharia, restos, tudo o que sirva à fancaria literária, acatando esse impulso de uma mentira alargada às dimensões de uma cultura inteira. E, no fim, o que soma isto? Não será a tal cultura que, no entender de Adorno, serve apenas para dar “a ilusão de uma sociedade que seria digna do homem, mas que não existe; ela dissimula as condições materiais na base das quais se edifica toda a vida dos homens; e com as consolações e os apaziguamentos que dispensa, serve para conservar a nossa existência nas más condições económicas que a determinam”. Prisioneiros de um inescapável teatro de imposturas, vivemos subjugados a esse estado de tutela (Kant), que se reflecte na incapacidade de cada um se servir do seu próprio discernimento sem a condução de um outro. Seres que abdicam da sua volição, incapazes de arriscar um juízo, de fazer sair o pensamento em si mesmo, esquivando-se a esse estado que o precede e oprime. A cultura não reflecte valores, é incapaz de manifestar um desejo autêntico, pulsões desaustinadas, de nutrir novas e ousadas linguagens simbólicas, aquela impulsividade e tensão do imaginário, elaborando constelações de fantasia. Pelo contrário, tornou-se ela mesma uma forma de bloqueio, um modo de coerção, por isso ninguém exige dos poetas essa capacidade de assaltar o leitor pela obscenidade, de o sobressaltar pelo choque do imprevisto e do irrepresentável, de o precipitar na ambivalência da repulsa e do gozo. Todos pedem simplesmente que continuem a dar-lhes corda, a produzir ritmos e imagens de acordo com as prescrições gerais. Tudo se presume, à medida que uma forma de narração superficial toma conta de todos os temas e assuntos, vulgarizando as experiências, e, assim, se gera uma cumplicidade desoladora, enquanto os discursos de ordem psicologizante adquirem uma tonalidade cada vez mais ligeira, adequando-se aos padrões de informação e programação computacional, alisando o terreno, uma vez que o desenvolvimento capitalista da inteligência artificial requer toda uma disponibilidade para adquirir novas habilitações, conduzindo também a um remodelamento das subjectividades. A tudo isto ajuda a compreensão dos nossos corpos essencialmente como discursivos, dessas personalidades e identidades performativas, adaptadas um regime de transferência de planos, a troca da realidade pelo simulacro, ignorando como as funções essenciais da crítica estão ligadas às capacidades, necessidades e desejos do corpo humano, esses limites mas também impulsos, essa força radical do que remonta sempre a uma raiz, sendo tudo isso o efeito de um longo processo de co-evolução com o nosso ambiente natural. Ora, o que se tornou imperativo é cortar essa ligação, produzir que, arrancado pela raiz, e transplantado, seja infinitamente adaptável, manipulável, dócil. Como nos lembra Silvia Federici, a verdade é que “mesmo sem a edição genética, já somos mutantes, capazes, por exemplo, de prosseguir com o nosso quotidiano mesmo sabendo que acontecimentos catastróficos ocorrem à nossa volta, incluindo a destruição do nosso ambiente ecológico e a morte lenta das muitas pessoas que hoje vivem nas nossas ruas, por quem passamos diariamente sem pensarmos muito nem demonstrarmos algum tipo de emoção”. “O que nos ameaça não é apenas que as máquinas estejam a assumir o controlo, mas também que nos estejamos a tornar como elas.” Neste episódio, de forma a abordarmos algumas das transformações que se têm operado numa dinâmica em que se procura “optimizar” os corpos e os ciclos biológicos no sentido de retirar destes toda a força de trabalho e os efeitos que aumentam a acumulação capitalista, contámos com a orientação de Patrícia Câmara, psicoterapeuta e psicanalista, alguém que tem aprofundado o impacto em termos de saúde mental de todo o contexto coercivo a que estamos sujeitos não apenas no mundo laboral como na engenharia que tem levado a uma precarização das nossas vidas, deixando-nos tenrinhos e à mercê das lógicas repressivas dos novos aparelhos totalitários.
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    3:32:12
  • Um país embalsamado entre fantasias podres. Com Pedro Levi Bismarck e João Oliveira Duarte
    No princípio tudo era mentira... Foi preciso o mundo com a sua teimosia infernal para imprimir em nós os caracteres de um fascínio que nos resgatasse da pobreza das ficções compulsivas entre as quais o medo se empareda, e foi quando aprendemos a retirar prazer desses destratos, a fintar o terror, que começou a emergir um sentido da arte, esse anseio exploratório que capturou o nosso génio colectivo, nos fez traficantes de lendas, dos relatos sobre seres que se embrulhavam com a vastidão, e traziam as marcas na pele, a estranheza nos gestos e os contornos algo delirantes de uma fábula que tanto nos cativava como um enredo inconstante, combativo, insatisfeito. A verdade era isso, uma história de que só ouvíamos os capítulos seguintes se a perseguíssemos como a uma presa. A verdade foge-nos, faz de nós caçadores, que vão enfebrecidos pela sua tão temperamental e esquiva canção. Mas o que a funda não é uma composição de factos indesmentíveis, e, sim, essa disposição daquele que a busca a movimentar-se, ir mais longe, querer dela algo mais. Com esse tumulto foi possível a alguns expandir a realidade noutras dimensões, com materiais do seu tempo e de outros, construindo essa força variante, capaz de acicatar o desejo. Pelo contrário, nos nossos dias encontramo-nos regredidos, mediaticamente embalsamados, arrastados para fantasias cada vez mais podres, reféns de um bando de mentirosos compulsivos, que, seja como for, de certeza medem o valor pelo efeito produzido. Convencidos dessa magia negra em que a vida não passa de uma cópia da imprensa, deram-nos o jornalismo como um ambientador e os modos reprodutivos do entretenimento como um vício que nos sedentariza, nos faz cair para dentro, ficarmos prisioneiros desses estímulos que se dirigem apenas ao que há de pior na nossa natureza. Estas coisas são explicadas nestes termos por Karl Kraus: "É que, na era dos que se deixam arrastar, o acto é mais forte do que a palavra, mas mais forte do que o acto é o eco. Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito. Na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária..." Num regime de subalternos como o nosso, por entre todo o luto que passou a ser o verdadeiro desígnio deste país, somos este resto senil de tantos séculos que não distingue já os espasmos da sua memória do zumbido das moscas sobre o seu cadáver, consolando-se a forjar a fraude da sua posteridade, produzindo um testemunho cada vez mais patético, desligado da realidade, invertendo a lógica do sentido de sacríficio. Desde logo, é cada vez mais difícil acreditar no carácter glorioso de uma glória que circula num mundo cada vez mais empobrecido, mais desgostante, piolhoso, abandalhado, trazendo os louros numa pochete. Por estes dias, os promotores deste castigo fizeram bem o seu trabalho, elevando Balsemão à categoria de mito, alguém que nunca foi outra coisa além de um traficante de influências, um dealer de aparências, chulo dos egos, que investiu tudo na idolatria e no temor, sabendo bem que a submissão adora travestir-se de liberdade. Aqui, não há apenas encenação, mas uma coreografia perfeita que transforma a fraude em inevitabilidade. A rede de Balsemão passa mais por um confisco da realidade, entre golpes de sedução e anestesia, entretendo-nos com um conto de fadas do qual não conseguem arrancar o cheiro a morto... Em vez de informação, parecem estender-nos um suborno à consciência, uma realidade submetida aos efeitos da propaganda, já não de ordem ideológica, mas como puro efeito de marketing, em que importa sobretudo fazer fé em todo o tipo de parvoeiras, deixar-se levar, viver os dramas insossos de um país ausente de si mesmo. E o que nos leva à loucura é a forma como neste país qualquer figurante se converte em figura de primeiro plano, desde que se mostre disponível para prolongar a impostura, com aquela conversa de empata das colunas amestradas de jornais que deixam a época exangue, subordinando os fins da existência aos meios de subsistência, como é próprio de qualquer jagunço, papagueando todas as superficialidades, fortalecendo essa zona de saturação que se decompõe num enredo em que cada um só actua com procuração da falta de carácter... Neste episódio, fizemos de tudo para estender ainda mais essas badaladas de primeira página a anunciar e incensar o defunto, a retratar as suas infinitas proezas, a vir com coisas de ontem, de nada, como uma grande pré-história, um passado fundamental, mas tudo tão azucrinante, num cerimonial pomposo, com as criaditas enchendo de ranho os trapos enternecidas com o CEO da Família Ltd, o Ministro da Gravidade Doméstica, o Oráculo do Controle Remoto, Barão do Jornalismo de Aluguer, Patriarca das Migalhas de Glória, mas depois, sem conseguirem sacudir aquele estilo afectado, esse tesão de mijo da prosa assanhada dos sacripantas, enaltecendo o registo cavalheiresco daquele que podia simplesmente ser mais um patrão sobranceiro e castrador, já querem elevá-lo a visionário, mais que um Magnata do Papel Higiénico com Manchetes que não aquecem nem arrefecem, foi um grande maestro democrata, prodigalizando os seus dotes, a sua fortuna, amontoando numa pilha as liberdades todas (qual feijoeiro mágico!) que lhe ficamos a dever, e abafando, como de costume, a trama das conveniências, a intriga promocional de toda uma camorra de medíocres, o encobrimento e as distracções para apagar as tropelias de ratazanas e de sanguessugas sem as quais, afinal, não há história nenhuma para contar, nem há História de Portugal, país que se arrasta há séculos de desfalque em desfalque. Desta vez, e para comer o bolo rei, pedimos ajuda a dois maganões, que já tinham passado por cá antes, e que se puseram a escarafunchar aquilo em busca da fava e a cuspir a fruta cristalizada para os lustres da salinha onde também nós velámos esse cachalote bonançoso, com aquelas manápulas cruzadas sobre o peito, subindo a prumo, subindo sempre, no sentido da eternidade.
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    3:53:05

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Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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