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Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Enterrados no Jardim
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  • O existencialismo publicitário. Uma conversa entre os dois monstros de plantão
    “Una mattina mi son' svegliato…” (Bella Ciao). Na terceira década deste vinte e um, parece que os manifestos de ordem literária são gravados em balas. As palavras com capacidade de ruptura, de suspensão viajam em trajectórias balísticas. Cada tiro carrega uma proposição, um código cheio de carga viral. O atentado ameaça tornar-se o mais pregnante género literário numa época de dissolução das linguagens simbólicas. Este género distingue-se pela concisão absoluta, efeito imediato, impacto sem intermediários. O manifesto literário foi absorvido pelo disparo, num momento em que, mais do que qualquer texto, a imagem determinou que os corpos são os verdadeiros signos, saturando o espaço mediático, num momento em que a aparência consome todo o sentido, em que a estética e a política se confundem. Neste quadro, descontando esses actos mais peremptórios, dos livros, valem os que são escritos com sangue, com a merda, com essas excreções biliosas, essas pedras cultivadas interiormente e que conseguem cortar a luz, devolver-nos a um mundo trevoso. No seu livro, Heróis, Assassínio em Massa e Suicídio, Franco ‘Bifo’ Berardi justifica o seu interesse por esses exemplos de brutalidade espectacular por reconhecer naqueles que a praticam a manifestação extrema de uma das tendências mais chamativas da nossa época: “Neles vejo os heróis de uma época niilista, uma era dominada por uma apavorante estupidez – a do capitalismo financeiro.” No entender deste filósofo italiano, nos nossos dias, o espaço do discurso épico foi ocupado pelas semio-corporações, esses aparatos dos quais emanam as ilusões que ocupam todo o horizonte de aspirações contemporâneas. “Aí reside a origem desta forma de tragédia tardo-moderna, nessa fronteira onde as ilusões são tomadas por realidade e as identidades percebidas como formas genuínas de pertença.” Para Bifo, a raça humana, deixando-se guiar por falsos heróis de enganosa substância electromagnética, perdeu a fé na realidade da vida e dos seus prazeres, e passou a acreditar apenas na infinita multiplicação das imagens. Ele serve-se de uma passagem do livro Os Condenados do Ecrã, em que Hito Steyerl assinala um ponto decisivo nesta transição, recordando o momento em que foi lançado o single Heroes, de David Bowie, em 1977: “Em 1977, a análise da situação iluminada pela banda punk The Stranglers proclama uma obviedade: o heroísmo terminou. Trotsky, Lenine e Shakespeare estão mortos. Enquanto os militantes de esquerda acorrem em massa ao funeral dos membros da Fracção do Exército Vermelho Andreas Baader, Gudrun Ensslin e Jan-Carl Raspe, a capa do álbum dos Stranglers mostra uma gigantesca coroa fúnebre de cravos vermelhos e declara: NÃO MAIS HERÓIS. Nunca mais. Mas também em 1977 David Bowie lança o seu single Heroes. Ele canta um novo tipo de herói, justamente a tempo da revolução neoliberal. O herói morreu, longa vida ao herói! Mas o herói de Bowie já não é um sujeito: é um objecto, uma coisa, uma imagem, um esplêndido fetiche — uma mercadoria imbuída de desejo, ressuscitada para além da miséria do seu próprio fim. Basta olhar para um vídeo de 1977 para perceber porquê: Bowie canta-se a si mesmo a partir de três ângulos simultâneos, com técnicas de sobreposição que triplicam a sua imagem; o herói de Bowie não só foi clonado, como sobretudo tornou-se numa imagem que pode ser reproduzida, multiplicada e copiada, um riff que circula sem esforço em anúncios que promovem quase qualquer coisa, um fetiche que embala como produto a glamourosa e impassível imagem de um Bowie para além dos dois géneros. O herói de Bowie já não é um ser humano maior que a vida, a cumprir missões sensacionais e exemplares; nem sequer é um ícone, mas um produto resplandecente dotado de beleza pós-humana: uma imagem e nada mais que uma imagem. A imortalidade deste herói já não provém da sua força para sobreviver a qualquer prova, mas da sua capacidade de ser fotocopiado, reciclado e reencarnado. A destruição alterará a sua forma e aparência, mas a sua substância permanecerá intacta. A imortalidade da coisa é a sua finitude, não a sua eternidade.” Face a este fenómeno seria possível identificar hoje um existencialismo de natureza puramente publicitária. Se ontem este nascia da náusea, e o homem lançado ao mundo era forçado a reconhecer-se livre, responsável, sem desculpa. Hoje, essa náusea foi estetizada, reciclada, convertida em branding. O que resta do ser não é o abismo da liberdade, mas a superfície brilhante do cartaz. Cada sujeito, em vez de se saber condenado à liberdade, descobre-se condenado à visibilidade. A nova metafísica é publicitária. A vida não se projecta — promove-se. O projecto sartriano, essa construção singular que respondia à contingência, converteu-se em storytelling padronizado. Já não me invento no risco de cada gesto, mas no algoritmo que recolhe e redistribui os meus gestos em equivalências de consumo. A angústia? Foi substituída pela ansiedade de não ser suficientemente visível, suficientemente performativo, suficientemente "autêntico" na vitrina universal. O inferno já não são os outros: é o feed. Um espaço onde o ser-para-outro já não é dialéctica mas estatística. Cada like é uma transcendência mínima, um micro-salto ontológico que me arranca por segundos à minha insignificância. A má-fé, outrora mecanismo subtil de fuga, é agora princípio estrutural. Viver é representar uma marca, e negar esse estatuto é apenas confirmar-se como produto de nicho. O homem publicitário não mente a si mesmo: ele é a própria mentira organizada, sistemática, estetizada. Que fazer diante deste deserto saturado de signos? Se em Sartre a liberdade exigia comprometer-se, aqui exige desaparição, opacidade, silêncio. Talvez a única resistência seja um existencialismo clandestino, sem campanhas nem slogans, uma vida que se furta à estetização total. Existir como quem sabota um anúncio: rasgando o cartaz, borrando o ecrã, recusando o brilho do próprio reflexo.
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    3:52:52
  • Entre a merda e o infinito não cabe um grão de areia. Outra conversa com Andreia Farinha
    Com este título roubado ao Zetho, neste que é o derradeiro episódio antes de nos retirarmos para cumprir com as obrigações do período estival, deixamos aqui um trilho algo caótico, um episódio que vai pela linha incerta entre a desintegração e a degeneração. Há um mecanismo de fatalidade que temos procurado desmontar, mas é difícil saber até que ponto a compulsão para interpretar o mundo não acaba por nos tornar reféns dos seus processos, como esses queixumes a que tantos se entregam e que acabam por inspirar e alicerçar o inferno no qual se encerram. Há certamente, hoje, uma propensão excessiva para os diagnósticos, um modo de infelicidade que é produzida por esse falar fiado que impede qualquer impulso de romper com todo este infortúnio, que, assim, faz de nós os seus publicitários. "Não é elegante abusar da infelicidade; certos indivíduos, bem como certos povos, de tal modo se comprazem nela que desonram a tragédia", escreve Cioran num dos seus silogismos da amargura. Deste lado estamos exaustos, apanhados pelos ritmos, pulsões e padrões de forças que temos dificuldade em compreender. Seria bom se pudéssemos fazer férias noutro tempo, arrastar-nos até ao passado e buscar uma outra textura para a realidade. A actual dá-nos asma. O próprio tempo vem se tornando cada vez mais um problema. Diz-nos Camus que, "quando o observamos, o tempo não anda depressa. Sente-se vigiado. Mas depois aproveita-se das nossas distracções. É até possível que existam dois tempos: o que observamos e o que nos transforma." Hoje, temos amiúde a sensação de ser impossível tirar férias, como se não houvesse distância suficiente para conseguir arrancar este zumbido que se nos infiltrou no sangue. Por vezes, busca-se aquele olhar que se demora entre o desencanto e a compaixão pelo mundo, como se o olhássemos a partir de um outro planeta. E se a contemplação do caos acaba por dar cabo de toda a confiança ou ilusão, para alguns só restam as boas maneiras, uma certa elegância, ou, à falta disso, um puro estilo, que não seja uma mera afectação, mas isso que alimentava nos espíritos melancólicos do século dezanove a ideia de que este acaba por ser um substituto da bondade. Enquanto as manias tirânicas do nosso tempo e o egoísmo daqueles que vivem fascinados com as possibilidades que ele oferece nos fazem sentir a mais, como estrangeiros incapazes de sentir qualquer apelo por estes costumes e valores, começamos a ter a sensação de que aquilo que distingue a cultura desta época é o facto de esta só poder ser adquirida em segunda-mão, através dos rumores e intrigas ou da nostalgia que ela provoca noutras pessoas. Pela nossa parte, estamos comprometidos com os estranhos, com esse anonimato familiar que é sempre possível dissimular, tentando livrar-nos das imposturas do ego. Sentimos falta de lugares de que ouvimos falar, desses cafés onde iam parar os náufragos de cada época, que apareciam ali sozinhos dispersos pelas mesas, devastados pela sensação de desequilíbrio entre os seus espíritos e o mundo. Claudio Magris fala-nos desses cafés que eram como hospícios para aqueles que carregam no sangue essas sombras separadas do tempo. A verdadeira conversa, que podia ser uma distracção afável, começa a ser um bem demasiado escasso. Sem a escuta, sem esse efeito de transfusão de sombras, as palavras soam cada vez mais enfraquecidas. “Hoje em dia já quase não se pensa — só se fala", anotava Musil nos seus diários. “A palavra é, cada vez mais, um adereço. Diz-se tudo e o seu contrário com a mesma confiança retórica”, acrescentava no seu grande romance inacabado. E nem é propriamente o que se diz que nos desgasta, mas a vagueza, a inércia, que acaba por gerar esse grau de convicção puramente histérico, esse fluxo morno de convicções instantâneas, que cresce como uma vegetação pegajosa sobre tudo o que antes exigia silêncio. O país (mas qual ao certo?) parecia ter sido tomado por uma peste sem micróbio. Embriagados pelo desamparo, confundindo expressão com existência, todos falavam, ninguém hesitava. Havia qualquer coisa de obsceno no modo como os discursos se substituíam à atenção, como se as palavras servissem não para indicar, mas para evitar. E a linguagem, esse instrumento outrora tão delicado — como a vareta de um físico ou a pena de um calígrafo chinês —, fora reduzida à função de cobertura: cobrir a ausência, disfarçar o abismo, não dizer. Talvez fosse isso, pensava Ulrich, o novo ideal espiritual da época: dizer tudo para não escutar nada. Falar não por excesso de alma, mas por défice de realidade. Farta de tudo isto, depois do expediente, a Andreia Farinha aceitou a proposta indecente que lhe fizemos de vir rematar a série, e veio desacertar-nos ainda mais as voltas, trazer a desordem de que é íntima como poucos, reconhecer-se na figura do criminoso Moosbrugger, gozando toda a licença da ambiguidade, chutando as nossas muletas e vícios, defendendo-se dos excessos teóricos, usando a navalha da lógica para ferir nuns momentos, e o delírio cósmico e persecutório para se evadir noutros. Este episódio foi, assim, um grande fracasso.
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    3:45:44
  • A tentação do fracasso. Outra conversa com Guilherme Pires
    Temos de começar pela falência. Pior seria reforçarmos este nauseante heroísmo subsidiado em que temos andado. Estamos a querer enganar-nos sobre o papel que supostamente ainda cumpre aos escritores e aos artistas desempenharem de forma a que se consiga um despertar das consciências, quando, na verdade, estamos bem para lá disso. As consciências já viram o que tinham a ver, e não descansaram até se verem livres desse peso. Como assinalava Guy Debord, “todos os espíritos minimamente atentos do nosso tempo concordam quanto a esta evidência: tornou-se impossível à arte sustentar-se como actividade superior — ou mesmo como actividade de compensação à qual se possa entregar alguém, com honra”. E prossegue: “A causa desse definhamento é, visivelmente, o surgimento de forças produtivas que exigem outros modos de produção e uma nova prática da vida. Na fase de guerra civil em que nos encontramos, e em estreita ligação com a direcção que vislumbramos para certas actividades superiores do porvir, podemos considerar que todos os meios de expressão conhecidos vão confluir num movimento geral de propaganda, que deve abranger todos os aspectos — em perpétua interacção — da realidade social. Quanto às formas e à própria natureza de uma propaganda educativa, várias opiniões se defrontam, geralmente inspiradas nas diversas políticas reformistas actualmente em voga. Bastar-nos-á declarar que, para nós, tanto no plano cultural como no plano estritamente político, os pressupostos da revolução não estão apenas amadurecidos — começaram a apodrecer. Não apenas o retrocesso, mas também a prossecução dos objectivos culturais “actuais”, por dependerem de facto das formações ideológicas de uma sociedade passada que prolongou até hoje a sua agonia, só podem ter eficácia reaccionária. Apenas a inovação extremista possui justificação histórica.” Em grande medida pode-se fazer corresponder o mundo digital a um desejo de deixar de justificar-se, passando a estabelecer apenas ligações intuitivas, precárias, a partir de um mundo de fragmentos descontextualizados, justapostos, passíveis de serem indefinidamente recompostos, sem que seja necessário ou desejável compreender a relação que os inscreve no livro de onde foram extraídos. As nossas mentes adaptaram-se a um regime virológico, foram abandonando a consistência dos corpos, furtando-se à função realista, a essas resistências cronológicas e às simulações históricas, para um campo onde todas as hipóteses valem o mesmo, tudo é perfeitamente acidental. Com a interferência de diferentes níveis de informação, realidades absurdamente contraditórias, a justaposição dessas expressões autónomas supera os seus elementos primitivos e dá origem a uma organização sintética de eficácia superior. A tal civilização do livro ruiu em poucas décadas, e a literatura está tão distante da nossa experiência concreta como estaria uma época pré-histórica. Na sua acelerada podridão, o mundo torna-se cada vez menos real para nós, e as nossas mentes parecem infectadas de ideias e conceitos desgarrados de qualquer experiência, e que podem, por isso, ser abandonados sem produzir qualquer abalo profundo, desde logo porque deixámos de ter em nós convicções a esse nível. O que resiste da leitura é um estádio paródico de apropriação e acumulação de elementos desviados, o qual, longe de querer suscitar ainda algum escândalo ou troçar seja do que for, em vez de evocar uma obra original, exprime, pelo contrário, a nossa indiferença perante um original esvaziado de sentido e já esquecido, restando apenas aquele apelo de ferir a ordem de forma a libertar um certo sublime. A memória não é já o elemento estruturante, tendo sido arquitectada de forma a produzir um todo coerente. A estrutura é o que cede, à medida que se impõem as leis do desvio. Teremos de mergulhar muito mais fundo na nossa incompreensão, rejeitar firmemente a herança clássica, e o carácter comedidamente racional dos nossos reflexos e réplicas, de forma a alcançarmos um grau de deriva realmente séria. Nem sei o que possa ou não vir a propósito disto, mas apetece trazer aqui uns versos de Reynaldo García Blanco, nem que seja apenas para abandonar esta comissão onde se regateia aquele mundo que estaríamos a perder, mas a que ninguém pretende regressar. “Subsídio nocturno. Tresnoitados assalariados./ Boémios contra-sol. Partem por líquidos que acabarão/ com o estômago que foi em tempos metal e dura madeira/ do bosque./ Despertos e musicais dormem ao/ crepúsculo e sonham com as mulheres que não têm./ Partem em fuga rumo à morte num carro âmbar. Partem os tresnoitados com a música âmbar/ e um cão âmbar.” Talvez o clima marroquino que aí vem faça de nós uma nação mais propensa a essas alucinações com que o deserto caça os homens. Então, a nossa cultura não terá escolha senão escapar à inclemência solar e fundar uma resistência nocturna. Neste episódio, convidámos o Guilherme Pires para irmos afinando mais algumas das impossibilidades que se colocam, hoje, perante editores e agentes independentes, num mundo cada vez mais saturado, e em que, em vez de se questionar o papel que podem ter ainda os livros e os seus produtores, talvez fosse importante discutir antes com que leitor se pode contar.
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    3:15:21
  • Das tribos do cinema ao humor corporativo. Uma conversa com Beatriz Silva Pinto
    Depois do terror, segundo ouvi dizer, as crianças aprendem a ver no escuro. É uma espécie de talento que nasce da necessidade de controlar a proliferação de imagens que o medo nos sugere. São cineastas dessa circunstância intolerável. Porque o escuro admite o pior. Da mesma forma há quem fale consigo mesmo, procure uma ordem qualquer de que se possa ocupar, às vezes retoma uma conversa mal resolvida, responde a alguém, confronta uma e outra vez o seu exausto repertório de truques, vai buscar cenas, planos de filmes e investiga tudo aquilo que sem se ter dado conta aprendeu de cor, a posição de cada objecto, que agora adquirem uma estranha densidade, um peso extraordinário. Saber convocar o sono é um dom, combater uma circunstância desfavorável, escavar um túnel a partir da cela do tédio. Era assim que Cyril Connolly explicava a necessidade da arte, defendendo que esta “é a tentativa mais nobre do homem para preservar a Imaginação do Tempo, para fabricar brinquedos mentais inquebráveis, bolos de lama que durem”… O cinema é um assunto das infâncias que mais foram obrigadas a escarafunchar certas feridas, a aguentar a imensa desolação da realidade, sobretudo para quem tem uma natureza atenta. O cinema é esse território dos mudos, dos que aprendem o valor de um enquadramento, de uma sequência, dos cortes, da montagem. Os que se deram ao trabalho de fazer do olhar uma lição de história. Se a uma criança, quando lhe perguntam o que quer ser quando for grande, nunca ouvimos a resposta – “Vou ser crítico de cinema” –, como notou, certa vez, François Truffaut numa entrevista, talvez isso se explique por estar longe de supor que haja outros que não precisam de mais estímulos, pois fizeram da memória o seu projector, e tiram prazer de fazer do cinema o motivo de longas exposições, conversas infinitas. São muitos, na verdade, os que se encontram na mesma situação, consideravelmente treinados desde crianças a ver filmes, a pensar sobre eles e, mais tarde, com os anos, ao encontrarem a sua tribo, a falar deles, a discorrer durante horas sobre cada detalhe, mas depois, até por esse excesso, são incapazes de passar para o outro lado, ter a audácia ou a veleidade imbecil de fazer um filme. Há uma espécie de erudição culpada, que em vez de iluminar, pesa intimamente. Em vez de se transformar num balanço atrevido, acumula-se como dívida, pede imensas desculpas, retira-se. É o saber do crítico que lê demais, vê demais, anota demais — e escreve de menos ou escreve como se estivesse sempre a dever explicações. É um saber que se constrange, que se encurva. Em vez de cortar na carne da obra, contorna-a com aparato técnico, com um dicionário em punho e medo de parecer ingénuo. Esquece, assim, que a verdadeira erudição é leve, ofensiva, cortante. Esta é a condição do espectador que perdeu a inocência e, com ela, a coragem de errar, de improvisar, de sentir sem aparato. Guillermo Cabrera Infante fala-nos de um crítico que sentia necessidade de atafulhar cada texto de um tal excesso de referências que, para lá do alarde da erudição, lhes emprestavam uma morbidez própria de quem gosta de arrastar cadáveres ou trocar restos entre túmulos, fazer combinações bizarras nas horas de tédio em que lhe é dado zelar por um desses arquivos que aguardam a completa digestão das larvas. Vale a pena reproduzir o texto… “Caín gostava de fazer frequentemente um grande alarde erudito. A sua erudição chegava ao ponto de dizer que H. C. Robbins Landon estava a completar o catálogo total da música de Haydn; que Tchékhov conheceu Tchaikovsky em São Petersburgo, no início de Dezembro de 1888; que a modelo preferida de Delacroix se chamava Émilie Robert; que, se o jazz nasceu nos bordéis de Nova Orleães, foi a ordem da Secretaria da Marinha norte-americana, em 1917, ao encerrá-los, a ocasião para a sua difusão e desenvolvimento posterior. Etc. Parece-me que Caín encontrava estas citações ao acaso, nas suas leituras caóticas e, por isso mesmo, múltiplas, e que as ia anotando nas críticas à primeira oportunidade, viessem ou não a propósito. Um dia disse-lho. A resposta dele deixou-me gelado (tão gelado que, se tivesse tido sabor, não estaria aqui a contar isto: estávamos à porta de uma escola), porque respondeu-me com uma citação de Chesterton: ‘Afinal, creio que hoje não me vou enforcar’, foi o que disse.” Onde queremos chegar? Essa costuma ser uma interrogação bastante cruel. Talvez ainda seja o mesmo problema do início, a criança que faz filmes para si, inventa o cinema para não ser absorvida pelo escuro. Neste episódio, vamos traçar um percurso entre esse desejo de ser encantado, entre a descoberta do cinema como arte produtora de uma memória defensiva, e um enredo formidável de correspondências, imagens que nutrem uma espécie de sistema imunitário e de resposta da imaginação contra circunstâncias infamantes. Nessa linha que vai de um cinema paraíso à degenerescência dos que só conseguem tratar as fitas como oportunidades para levarem a cabo processos de dissecação, contámos desta vez com Beatriz Silva Pinto, que além de trabalhar no Cinema Batalha, tem uma relação empenhada com esta arte, e uma perspectiva pouco cínica das possibilidades de expansão que nos oferece, desde logo enquanto antídoto face à dissolução das comunidades, e ao retrocesso dos espaços de encontro e resistência a um quotidiano cadaveroso.
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    4:08:25
  • Assalto à Biblioteca Nacional com a bandeira pirata de Luiz Pacheco
    Num mundo coagulado, num tempo viscoso, em que só se podia andar aos tropeções, isto quando outros marchavam, cercavam, se punham em cima para que ninguém deixasse de se sentir deglutido, embrutecido, sem conseguir fazer outra ideia da vida, e ao menor esforço logo se sentisse ofegante, assim mesmo ainda houve um que outro a recusarem viver esse pesadelo da lentidão e da impotência, esse enfado dos órgãos. Houve quem fosse capaz de ver as coisas através da sua fadiga, e escavar à unha o seu penhasco. A ele ainda lhe ouvimos o passo nervoso, aquele seu canto de sereia roufenha, experimentada, abusiva. Aquela voz de miúdo, reinando com tudo e todos. Conhecemos muito bem o perfil, mesmo que não nos tenhamos chegado a cruzar pelas ruas com esse bicho escarolado, ficou-nos um rastro que não perdeu nada do seu calor. Quanto ao meio literário como ele o viu e mostrou, desde a sua morte fechou-se ainda mais nos seus cálculos e apostas, e, por estes dias, ao homem de letras já nem se pede que seja minimamente consequente, que pense alguma coisa, nem que procure dar testemunho do seu quinto dos infernos. Tudo refocila na mesmice, e assim, no limite, como assinalava Le Clezio, “toleram-se no escritor, no artista certos desvios, apenas na condição de poderem ser recuperados, e de essa liberdade jactanciosa poder ser confundida no interior da totalidade literária: simples concessões à moda, ao espírito do público, que é preciso saberem fazerem-se sob pena de se ser ignorado”. “E o que vem a ser um escritor que não seja lido?”, interroga ele. A suprema habilidade de Pacheco foi ter sabido dizer tudo o que queria e como queria, num pacto incerimonioso em que deixou que o tomassem por esse delinquente que serve só o consumo quotidiano do mal que o bem se autoriza. A verdade é que ao colaborar nesse número, foi ganhando margem, gozando o prato como um escritor excluído da ordem beneditina, e que, se passou mal, e tantas vezes se viu condenado a encarnar esse mal que o bem social inventa e de que necessita para a sua autopurificação, à medida que os anos foram passando, quase todos os grandes vultos, os santarrões que se acotovelavam nos nossos altares, foram caindo e desfazendo-se em cacos, e ele, com aquela sua biografia desabusada, em tantos momentos particularmente amarga, passou a representar essas noções que se aguentam de pé, acabando mesmo por se ver engolido pela ordem cultural que tanto fez por esbarrondar. O seu imenso romance desbocado ainda anima e arrepia, continua a dar lições sobre o atrevimento e essa força de quem não deixa nada por dizer, e mesmo se o fez a partir de um ângulo de absoluta subjectividade, hoje os seus juízos tendem a converter-se em denominador. Possui um nome que não deixa de ser repetido com uma frequência assombrosa em todo o lado, um nome que serve como uma praga. Mais do que um maldito, Pacheco ganhou entre nós o estatuto de uma maldição. E, no entanto, está longe de se ter convertido num desses grandes nomes, não se regenerou, por mais que algumas almas cândidas pretendam extrair-lhe à força uma moral, vendendo a banha da cobra subversora, como se a própria literatura não pudesse ser senão uma instituição redentora. Pelo contrário, para aqueles que se viram para ele buscando o raro alento que anima a insolência, sabem que a seriedade desta escrita se mede pela forma como incita o género de ataques que lixam a fulanada, a dos fornicoques justiceiros que temem ainda um regime de crónica cruel e rude, deixando a mula beletrista pela fúria rumorosa que cresce de um desabafo. Ora, o Pacheco não pedia desculpa de estar vivo e a escrever, como também nunca quis dar ele a missa, mesmo se admitia que a sua “memória regressiva tanto dava para o torto (as sacanagens) como para o actos de cristandade laica”. E agora, num momento em que mais do que ordenar, exaltar e autopsiar, o mais premente mesmo era trazê-lo por junto de volta ao nosso convívio regular, depois de lhe termos cosido pedaços das muitas partes, num volume que, antes de mais, o que quer é ter-se de pé sem apoio de espécie alguma, até para fazer de tijolo e estar apto a quebrar janelas, lá subimos à torre, fomos directamente ao buffet com o nosso prato deslavado, e se não deu para encher o bandulho, tentámos capturar a bandeira deixando, para a troca, umas enormes cuecas que levassem o vento por cima da Biblioteca Nacional a fazer caretas de todo o tamanho. Fica aqui o registo da apresentação que teve lugar esta tarde, e segue assim como um episódio extra, com as participações de Marta Félix, João Pedro George e Diogo Ramada Curto, entre outros.  
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    2:23:35

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Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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