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Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
Enterrados no Jardim
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  • Livralhada, alquimia, terror e verdade. Uma conversa com David Teles Pereira
    Desde a invenção de Gutenberg até ao actual quadro de proliferação absurda, dessa obesidade editorial que fez dos livros mais outra categoria entre os produtos de consumo, os séculos de lenta fermentação das linguagens e conceitos estão aí como destroços a flutuar à superfície de uma piscina, a saque para os fins de uma mitologia de bric-à-brac, tacanha, cavando uma fossa, um largo intervalo que poderia ligar um título de Dickens a outro de Balzac: Grandes Esperanças e As Ilusões Perdidas. Depois da engrenagem ter entrado em delírio com a ideia de progresso, sentimos que começa a esgotar-se até a promessa de sentido. O futuro viu-se absorvido pelo presente contínuo das infinitas mastigações distractivas, e tememos, com uma lucidez amarga, que o amanhã não seja senão uma versão ainda mais ignara disto mesmo. Abrir as redes sociais, acender um ecrã, deslizar o dedo por um fluxo interminável de imagens e frases truncadas produz hoje a sensação de que em toda a parte se rompeu o pacto social: regressámos ao estado de natureza, recaímos na barbárie luminosa do comentário instantâneo. A cada notificação, uma crispação; a cada opinião, uma faúlha de ódio. Alguns, como outrora advertira Sciascia, veriam nisto a erosão última da palavra escrita — o seu desgaste até à transparência, até que já nada nela resiste ao ruído e à velocidade. Existíamos — lêssemos ou não — dentro de uma sociedade literária, onde os argumentos, as formas de arquivo, as listas e até os modos de enunciação provinham do enredo dos textos, da composição e ordem que se alargava a partir das bibliotecas, como se ali estivesse o núcleo de uma trama com possibilidades de expansão até ao infinito. Mas as imagens… essas formas que serviam de ilustração, um esboço para catapultar o impulso ou um eco, começaram a reproduzir-se como uma praga, a invadir o centro, a degradar o eixo do imaginário, o seu movimento de rotação e translação, que acabou por se fixar, a realidade encadeada pelo seu substituto. Saturado, o olhar já não mergulha no interior em busca de uma alucinação estupenda, mas fica agarrado ao estímulo; já não lê, absorve-se. A narrativa dissolve-se em fragmentos visuais, o tempo perde espessura, e o mundo, reduzido a ecrã, já não se conta: actualiza-se. Como escreve José Emilio Pacheco no ensaio do qual partimos para esta reflexão, “um mundo sem leitura é um orbe em que o outro só pode surgir como inimigo”. “Não sei quem é, o que pensa, quais são as suas razões. E, sobretudo, não possuo palavras para dialogar com ele. Por isso, só me é possível percebê-lo como ameaça.” Hoje tudo reemerge com o brilho artificial de outra Disneylândia, como nostalgia daquilo que não vivemos e nunca foi nosso. Mas é pior do que isso: a nostalgia tornou-se uma função sistémica, uma engrenagem exasperada que anula o próprio passado, convertendo-o em matéria-prima para as retrotopias do presente. O que antes era memória transforma-se em decoração, em cenário temático de um mundo sem recordação. Não espantará, pois, que dentro de alguns anos surja um parque temático consagrado aos livros — simulacro final de uma experiência extinta. Entre nós, já se ensaiou essa utopia domesticada na aldeia literária de José Pinho, em Óbidos: gesto audacioso e melancólico, como quem ergue uma biblioteca dentro de um aquário. Não é possível falar destes assuntos sem enfrentar a dúvida sinistra: defender hoje o livro e a leitura não equivalerá, afinal, a reforçar a charanga, o enredo trapaceiro de uns e umas sempre à cata das verbas, dos fundos de desenvolvimento, ávidos por os converter em festivais de miragens concentradas, todos estes certames onde o culto do autor, exibindo-se como produto, obsta a que se leiam e discutam os textos? “Quando comecei a escrever, ensinaram-me que o eu era odioso; o elegante e o edificante consistia em empregar sempre o nós. No fundo dessa regra de boa conduta literária residia a ilusão de que existia uma comunidade de pessoas ilustradas ou que aspiravam a sê-lo”, adianta Pacheco. “Partilhavam um vocabulário, um código e algumas ideias gerais acerca daquilo que, neste domínio, constituía o bem comum.” Agora, o intolerável — e por vezes grotesco — é falar na primeira pessoa do singular, submergir nesse regime autobiográfico que fez da autoficção um modelo universal de salvação e comércio. Cada fragmento de vida converte-se em dogma, cada emoção em mercadoria moral, cada exposição em gesto de legitimação. O mundo exterior, os tantos que se sentem parte de uma comunidade privilegiada por aderirem a este regime mimético, participam do mesmo culto narcísico: repetem-se, confirmam-se, citam-se mutuamente como se a autenticidade fosse uma forma de poder. Assim, o “eu” transforma-se em tirania discreta — um império de pequenos despotismos sentimentais, onde cada confissão exige aplauso e cada dor privada reclama estatuto de verdade absoluta. Neste episódio, tivemos connosco o David Teles Pereira, elemento da formação original dessa banda sertaneja chamada Língua Morta, em que chegou a lançar alguns êxitos supreendentes como Coração Anacoluto, Beijo Heteronímico, Livro do Desassossego com Forró, O Guardador de Galinhas Selvagens, Balada do Espantalho Sonâmbulo, Sinais de Fogo no Pijama do Lobo. Veio falar-nos de políticas públicas para o sector do livro, e ainda de Lovecraft, Carl Schmitt e outras profanidades que não conseguimos transcrever nem arrumar neste tipo de categorias.
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    3:20:36
  • Os peixes solúveis e o despotismo rococó. Uma conversa com António Tonga
    Poucos se perguntam o que resta do homem, que é feito dele passados estes últimos dois séculos de abastardamento do espírito, esse ser cada vez mais inapto, que se enreda nas suas justificações, que se adapta seja como for, se safa, dê por onde der, com essa capacidade de levar a vida inteira num longo estertor. Mas a alguém deveria intrigar esta estagnação dos órgãos, à medida que o horizonte se nos escapa, como vamos aperfeiçoando a nossa corrupção, as habilidades mesquinhas, a farsa, a sórdida trama, sempre neste embrutecimento das faculdades, cobrindo tudo com um sorriso petrificado. O instinto de sobrevivência deu lugar a um turvo ofício de entranhas, a estes seres imensamente cautelosos, viciados no seu próprio terror, vítimas de uma subjectividade exagerada, que levam os dias negociando termos de forma a esquivarem-se a qualquer encontro com o perigo. Deveríamos fazer um esforço por compreender o que vem a ser este ser sujeito a uma ocupação que o tornou tão profundamente servil, perfeitamente adaptado a uma ética inteiramente fundada sobre o valor mercantil, a honra do trabalho, os desejos comedidos, a brutalidade instintiva, e a morte, esta que nos segue tão de perto, e manca de pequenez em pequenez. “Tornar-se tão insensível e portanto tão manejável quanto um tijolo é aquilo a que benevolamente convida a organização social”, diz-nos Raoul Vaneigem. Ele denuncia a imensa máquina de condicionar, e explica a ausência de um ânimo e de um enredo tumultuoso que favoreça a transformação com a falta de sinais inspiradores ao nosso redor. “Face à minha prisão actual, o futuro não tem interesse para mim.” No fundo, o capitalismo cria um conflito dentro de cada um de nós, uma divisão entre si e si mesmo. Temos sempre alguma justificação na ponta da língua, uma mentalidade de servos, habituados a serem sacudidos ao virar de cada esquina. Constantemente sujeitos aos interrogatórios, estamos sempre disponíveis para abrir o livrinho com a nossa contabilidade mais íntima. Repare-se na expressão, nos modos mais comuns, nesse constante ensaio com que cada um se desfia a si mesmo, como se estivesse a meio de algum desses exames de rotina, ou fazendo por se apresentar nos tantos concursos, providenciando sobre qualquer tópico uma opinião habilidosa, assumindo a pose de forma a oferecer o melhor ângulo a qualquer montra, como se a sua imagem estivesse a ser captada pelas câmaras, esse rosto de transcendental e eterna inutilidade que põe um tipo quando faz de produto. Vaneigem diz que o sentimento de humilhação difuso que nos persegue nada mais é que o sentimento de ser objecto. Em seu entender, não somos escravos dos nossos desejos tanto como o somos da crença na felicidade dos outros, “uma fonte inesgotável de inveja e ciúme que faz experimentar por intermédio do negativo o sentimento de existir”. “Invejo, portanto existo. Apreender-se com base nos outros é apreender-se outro. E o outro é o objecto, sempre. De tal modo que a vida se mede pelo grau de humilhação vivida. Quanto mais escolhermos a nossa humilhação, mais ‘vivemos’, mais vivemos com a vida arrumadinha das coisas. Essa é a manha da reificação.” Isto explica todos esses esforços empreendidos para mascarar o nosso desespero. O que é mais doloroso é pressentir esta culpa face a si mesmo, todas as nossas tentativas para dissimular o esfarelamento dos valores, a ruína das existências, a inautenticidade dos nossos gestos. Por isso, no entender do autor de “Arte de Viver para a Nova Geração”, “as crises que sacodem o mundo não se diferenciam fundamentalmente dos conflitos em que os meus gestos e os meus pensamentos se defrontam com as forças hostis que os travam e os desviam”. O capitalismo significa um colapso da própria consciência humana. Se pudéssemos ganhar alguma distância em relação a nós próprios, se nos escolhêssemos como inimigos, nada nos daria maior prazer do que cuspir nisso a que, por mera afectação, dizemos ser a nossa alma. Gostamos de manter o quarto na penumbra de forma a que as formas do lixo que nos acusa não se possam distinguir, e então admiramos os ecos de outro tempo, o tempo que já foi. Bate-nos uma saudade estúpida de um mundo capaz de produzir em nós algum temor, uma “saudade dos tempos da juventude antiga, dos sátiros lascivos, dos faunos brutais” (Rimbaud)… Voltamo-nos para esses reflexos e para a pouca água que resta à superfície de alguns textos, e repetimos a estranha ordem de palavras que parecem ir além daquilo que somos capazes de sentir… "se viesse um homem ao mundo, hoje, com/ a barba de luz dos patriarcas, só poderia,/ se falasse deste/ tempo, só poderia/ balbuciar balbuciar/ sempre, sempre,/ só só" (Celan). O isolamento é o pior castigo e, no entanto, só através dele podemos fazer esta espécie de luto em relativa paz. “Para sobreviver à uniformidade que nos cerca, a única opção é reconstituir sem parar o nosso próprio mundo interior, como uma criança reconstruiria por todo o lado a mesma cabana. Como Robinson, reproduzindo o seu universo de merceeiro na ilha deserta, com a diferença de que a nossa ilha deserta é a própria civilização e de que somos milhões a desembarcar incessantemente” (Comité Invisível). Dito isto, o pior seria se nos contentássemos com a ridicularia daquilo a que chamamos solidão. Para nos pronunciarmos orgulhosamente sós ainda teríamos de ser uns quantos, para somarmos um Robinson convinha que naufragassem de uma vez largas centenas, e pelo menos uns sete, nove ou até uma dúzia se safassem, constituindo uma pequena camarata na tal ilha, isto para compensar a forma como as nossas almas parecem ser já meros fragmentos, estilhaços de uma qualquer unidade. Não demoramos muito a desconfiar como mesmo esses períodos de abatimento são um pequeno teatro que representamos para benefício da catástrofe da nossa personalidade, que há muito deixou de nos parecer minimamente bela, cativante, abrangente. Neste episódio, juntou-se a nós um tipo que, para coçar-se, não precisa de inventar pragas delirantes nem patéticas, e que veio trazer-nos um embalo mais largo na sua relação com o tempo, com a história, com a herança daqueles que estão dispostos a prosseguir cada dia, travando uma batalha atrás de outra, denunciando os tantos desdobramentos e ecos do colonialismo, e de todos os modos de exercer poder de forma violenta, estabelecendo hierarquias degradantes, e isto sem entrar nesses jogos de palavras cruzadas em que Vaneigem viu a esquerda triturar-se. Activista anti-racista, membro fundador do colectivo Consciência Negra, e um entre as centenas de milhões de herdeiros da luta visceral dos povos africanos pela sobrevivência e por uma África livre do esmagamento capitalista, António Tonga juntou-se a nós para discutirmos o que possa ser uma acção consequente e formas de organização e luta que não se deixem reduzir ao habitual esquema burocrático.
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    3:43:45
  • Dos sem-terra aos porcos-mealheiros. Uma conversa com Paula Godinho
    Estamos a assistir nos nossos dias ao advento das primeiras gerações sintéticas. Seres que se pretendem ver desencarnados, a alcançar um plano de elevação que se prende com a hipótese de flutuar num plano etéreo no qual tudo será disponível, ilimitado. Mas como a internet já o demonstrou, esses oestes sem lei digitais são zonas onde há muito tudo foi já predeterminado. E se, como nos diz Bachelard, “querer, é querer o que não se pode”, esse é um campo de anulação dos próprios sonhos e das formas de resistência a partir do imaginário. Poderíamos mesmo sonhar desligados dos impulsos que o corpo nos oferece? Numa das melhores profecias sobre o inferno que nos aguarda, Borges lançou esta hipótese: “Sonhará um mundo sem a máquina e sem essa máquina, o corpo. A vida não é um sonho, mas pode chegar a ser um sonho.” Este sonho começa a configurar-se nos nossos dias, mas, longe de ser uma libertação, parece um projecto de anulação da experiência. O Talmude diz que mais vale um dia nesta vida que uma eternidade no mundo que se segue. Mas o facto é que a própria realidade começa a ser pensada cada vez mais como doença ou, pelo menos, como ameaça. Ora, para compreendermos esse além que hoje nos é prometido, devemos prestar atenção às fantasias mórbidas que por todo o lado saturam o nosso campo visual, deter um olhar cheio de suspeita diante desta sobre-imposição do design a todas as esferas da vida, num momento em que a aceleração dos efeitos de troca leva a que a desorientação geral sirva para reforçar os impulsos programadas. Assim, toda a incerteza, todos os elementos de fragilidade e auto-recriminação, bem como a sensação da falta de propósito das nossas existências, levam a que a interioridade e a própria consciência se tornem zonas demasiado dolorosas. Provocam uma vertigem com a qual estamos a deixar de saber lidar, restando este virar do avesso, esta tentação de buscar uma ordem de beatitude ao nível das superfícies. Num momento em que nos sentimos fulminados por esta devastação colectiva a que chamamos realidade, tudo nos empurra para dentro, para formas de isolamento, e o corpo torna-se o destino e parece consumir todo o quadro das nossas ansiedades. Dos cuidados constantes com a imagem às dietas e suplementos, ao esforço para atingir medidas ideais, o culto passou a ser exercido nos ginásios, nas mesas de operações, com as cirurgias e toda a panóplia de intervenções a assumirem o peso de uma nova liturgia. Bernard Andrieu escreveu que “o corpo é a nova religião do século XXI”: híbrido, desnaturalizado, sujeito a metamorfoses sem fim, tornou-se objecto de uma promessa de salvação. Em “Crimes do Futuro”, Cronenberg encena precisamente este culto: a carne aberta é o sacrário, os bisturis são as mãos sacerdotais, a beatitude já não se procura no invisível mas na pura visibilidade — no espectáculo do corte, na exibição da incisão, no êxtase do que a imagem retém e multiplica. A religião desloca-se do mundo espiritual para o terreno da estética, e esta é quase invariavelmente de ordem narcísica. O corpo submete-se inteiramente ao design, surge como interface. Baudrillard parece ter profetizado a forma como a simulação absorve o real até que o corpo não é senão um ecrã onde se projecta a ilusão da vitalidade. Em breve, e face a um horizonte definido pela carência, pela decadência, pela violência, pelo entretenimento extremo e por catástrofes ambientais desencadeadas por nós, já não haverá margem para nos reconciliarmos com a natureza, restando apenas a reprogramação infinita, a carne como software. As vísceras tornam-se design de interiores, um mobiliário íntimo a ser remodelado. Nega-se a transcendência, restando-nos a imanência absoluta da imagem, a vertigem de um narcisismo que se alimenta do vazio. Este culto do corpo pós-natural é a contrapartida simbólica da devastação planetária. Com o adensar da catástrofe, em vez de enfrentá-la, a energia é deslocada para a construção narcísica de uma pele artificial, de um rosto filtrado, de um corpo reprogramado. Multiplicam-se as próteses, desenhamos novos contornos, fazemos dele um laboratório de constantes mutações, um objecto de culto devotado à ilusão de permanência no regime das imagens. A operação cirúrgica devém assim sacramento, inscrição visível da fé na técnica, tatuagem de um mundo que só se reconhece no brilho do artifício. O paradoxo é que esta fuga não conduz a um renascimento, mas a uma duplicação infinita: o corpo já não é carne, é simulacro, vitrina, holograma de si mesmo. O humano apaixona-se apenas pela imagem que reflecte, já não pelo sopro da vida que a atravessa. Com tudo isto, a natureza perde consistência, é um ruído distante, um pano de fundo em dissolução. Ao mesmo tempo, toda a degradação planetária se traduz em espectáculo, e cada catástrofe ambiental encontra o seu correlato narcísico no desejo de remodelação. Quanto mais o mundo apodrece, mais se purifica o corpo-imagem. O delírio é este: acreditar que se sobrevive ao colapso não protegendo a terra, mas cultivando a aparência. É um culto sem transcendência, e a cada incisão, a cada retoque, acredita-se que se derrota a morte. Na verdade, apenas se escava mais fundo a distância em relação ao real, essa devastação que continua a corroer o planeta. A religião do corpo é, afinal, a máscara última de uma civilização que escolheu amar a sua própria simulação e abandonar a terra que a sustenta. Mas tudo são reflexos condicionados, e a impotência, a sensação de separação, de diminuição do alcance, de incapacidade de ter uma acção decisiva, tudo isso é programado. O vazio no que toca à esperança, como nos diz David Graeber, não é natural. “Precisa de ser produzido. Se quisermos realmente compreender esta situação, temos de começar por entender que os últimos trinta anos assistiram à construção de um vasto aparelho burocrático para a criação e manutenção do desespero, uma espécie de máquina gigantesca concebida, antes de mais, para destruir qualquer sentido de futuros alternativos possíveis.” Esta frase surge em epígrafe ao livro de Paula Godinho, “O Impossível Demora Mais”, e às tantas a autora estende esta reflexão: “Numa ordem do mundo actual marcada pela teologia da neoliberalização, o futuro parece uma condenação, enquanto as práticas de resgate de outras possibilidades são encaradas como desordem, numa caminhada para o abismo. Agita-se a bandeira do final de todos os processos que pretenderam construir novos projectos de sociedade que terminaram em distopias, vistos como sinais de ingenuidade de alguns.” Antropóloga com vários anos de experiência em campo, Godinho tem-se aplicado em recolher testemunhos e experiências daqueles povos que não se renderam nem ao fim da história nem às coacções do ideário apocalíptico que trabalha para nos convencer da nossa impotência, e veio trazer-nos o seu catálogo com ramos de oliveira e outras espécies, avistamentos de terras futuras.
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    3:56:21
  • Um neo-bolchevique na praia lusitana. Conversa com Arturo Zoffman
    Vamos falando como alguém a quem os dentes foram arrancados das gengivas, mas que, em vez de os cuspir, se dá a um trabalho desgraçado para que não lhe escapem da boca, para não os engolir, esperando a oportunidade de que lhe seja restituído aquele sorriso de antes. Mas quando ao certo? Apesar da insubordinação dos factos materiais contra a ordem fixa das coisas, que há muito estão reduzidas ao seu mero valor de troca, as palavras exprimem uma realidade que já não deveria precisar de ser explicada. Não fosse para interromper o modo estuporado de uma cultura que distorceu inteiramente a relação entre a vida e o pensamento. Todas as evidências parecem inúteis, pois buscamos nos outros uma audácia que nos falta a nós mesmos. Não deveria ser preciso, hoje, repetir o repto feito por Bataille na revista Contre-attaque, nos anos 1930, apelando a “violentos sobressaltos de potência” nascidos nas ruas contra a “impotência” das hesitações politiqueiras perante os movimentos fascistas. A verdade é que nos cansamos da nossa própria farsa indigesta, pois tanta exasperação em tentar instigar os outros revela, na verdade, como não estamos a conseguir convencermo-nos nem a nós mesmos. O próprio activismo não é, como já sabemos, mais do que uma renitência em graduarmo-nos através do nosso desespero, preferindo experimentar uma e outra vez a nossa impotência, aguardando que a catástrofe venha enfim tornar irrecusável tudo aquilo que fomos dizendo. “O activista mobiliza-se contra a catástrofe. Não faz mais do que prolongá-la. A sua precipitação consome o pouco de mundo que ainda existe. A resposta activista à urgência permanece ela própria no interior do regime de urgência, sem esperanças de o abandonar ou interromper”, lê-se em “Convocação”, um texto sem assinatura, na linha daquilo a que nos foram habituando os membros do Comité Invisível. Enquanto isso, se “as leis, códigos e decisões de jurisprudência existentes são suficientes para tornar punível qualquer existência, bastando para tal que sejam aplicados à letra”, é evidente que não queremos deixar de estar sob tutela, como se o sentido mais profundo que nos inquieta fosse apenas uma incerteza em relação ao plano, como se não conseguíssemos deixar de fazer as nossas birras de fedelhos, mas sem levar as coisas ao ponto de assumir a tarefa de nos governarmos a nós próprios. Habituámo-nos à previsibilidade da história, e aquilo que receamos acima de tudo é que se acabem os castigos. Custa-nos romper, assumir uma força de abjecção diabólica, deixar que a vaga dos sonhos que poderia arrastar-nos com ela nos leve a assumir algum acto irreversível. Por isso apenas flertamos com as influências ou ideias transgressoras. Já sabemos demasiado para o nosso bem. Sabemos como faltou sempre por aqui um conceito radical de liberdade, e que o liberalismo não passa de um regime anquilosado que, com a sua moral humanista, funciona como um perfeito álibi para continuarmos entretidos com as nossas denúncias, as nossas manifestações inofensivas, enquanto toda a comunidade é arruinada, e os grupos se vêem separados dos meios de existência e dos saberes que poderiam dar-lhes as condições de se emanciparem, desertando de vez. Enquanto isso prossegue “a devastação metódica de tudo aquilo que permanecia vivo na relação dos humanos entre si e com os seus mundos” (“Convocação”). Boa parte dos protagonistas envolvidos nas operações de mobilização já não iriam ser capazes de fazer mais nada se, por um milagre, se operasse a transformação que tanto dizem buscar. Quanto ao liberalismo, ganhou uma evidência pornográfica como o seu princípio axial é a ideia de que tudo deverá ser tolerado, tudo pode ser pensado e manifestado, desde que não afecte a estrutura da sociedade, nem ponha em causa as suas instituições ou o poder do Estado, o qual serve acima de tudo para sustentar a ficção policial em torno das formas de propriedade e da obscena acumulação de capitais nas mãos de muito poucos. “Por outras palavras, a liberdade de pensamento do indivíduo deve ser total, a sua liberdade de expressão também, mas não poderá esperar a concretização das consequências do seu pensamento no que respeita à vida colectiva”, lê-se nas páginas do opúsculo já referido. Parece-nos que 2025 é uma data que deveria estar situada no futuro, mas despertamos a cada dia forçados a reconhecer que estamos condenados a andar às arrecuas, sobretudo se tivermos em conta aquele ideal de liberdade que, segundo Breton, neste mundo, só à custa de milhares de duros sacrifícios poderia ser alcançada, sendo vivida então sem limitações, sem qualquer calculismo pragmático. No fundo, este ideal torna-se ameaçador não apenas para o sistema, mas para o carácter da maioria de nós. O maior triunfo do capitalismo foi ter sido capaz de reproduzir o homem como um ser à sua imagem, um ser que se identifica e reflecte todas as suas aspirações vazias, degradantes, um ser incapaz de beneficiar da partilha, desde logo a partilha das nossas necessidades, desde as mais básicas aos anseios que nos fazem voltarmo-nos para fora, sentirmos fome de mundo, de algo que não se confunda com as distrações e divertimentos ao nosso dispor neste cemitério imenso. A verdade é que as necessidades foram substituídas por compulsões, os desejos foram degradados até darem lugar a meros caprichos, às intrigas e obsessões de subjectividades amesquinhantes, que retiram o seu gozo das inúmeras formas de predação, de uma sobrevivência que depende da escravização do outro. As nossas metrópoles não são mais do que a planificação desse truculento universo infinitamente dobrado sobre si mesmo, um meio onde cada interacção faz evoluir o conteúdo de agressividade, em que cada uma das outras formas de existência constitui para nós um obstáculo, um empecilho, o que nos programa de forma a não perdermos muito tempo a imaginar o efeito que as nossas acções possam ter na vida ou na intimidade do outro, e daí até ao seu massacre impõe-se apenas a possibilidade de forjar um argumento exculpatório. Neste episódio, tivemos de ir ao passado buscar um desses moldes quebrados, fomos às forjas de onde saíam aqueles rapazes dados a uma militância anterior a todo este efeito de separação, a todos estes contextos sociais em que se toma como criminosa a mais pequena tentativa de passar por cima da mediação do mercado. Arturo Zoffman consegue essa proeza de ser jovem mas antigo, é espanhol mas alguém lhe deve ter cuspido um bom pedaço de sangue russo nas veias. Mas pode ser que isto seja um efeito dos seus interesses e do seu campo de estudo. Muito ligado às revoluções do início do século passado,é membro do colectivo de comunistas revolucionários e dirige um projecto na FCSH que procura analisar a forma como a emergência dos fascismos na Europa teve como resposta um endurecimento dos regimes democráticos, com mudanças constitucionais, estados de excepção, etc. É um homem-relíquia, tanto pode estar atrasado um século em relação à sua época como pode ser já um dos primeiros elementos de uma espécie vindoura.
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    3:21:29
  • O existencialismo publicitário. Uma conversa entre os dois monstros de plantão
    “Una mattina mi son' svegliato…” (Bella Ciao). Na terceira década deste vinte e um, parece que os manifestos de ordem literária são gravados em balas. As palavras com capacidade de ruptura, de suspensão viajam em trajectórias balísticas. Cada tiro carrega uma proposição, um código cheio de carga viral. O atentado ameaça tornar-se o mais pregnante género literário numa época de dissolução das linguagens simbólicas. Este género distingue-se pela concisão absoluta, efeito imediato, impacto sem intermediários. O manifesto literário foi absorvido pelo disparo, num momento em que, mais do que qualquer texto, a imagem determinou que os corpos são os verdadeiros signos, saturando o espaço mediático, num momento em que a aparência consome todo o sentido, em que a estética e a política se confundem. Neste quadro, descontando esses actos mais peremptórios, dos livros, valem os que são escritos com sangue, com a merda, com essas excreções biliosas, essas pedras cultivadas interiormente e que conseguem cortar a luz, devolver-nos a um mundo trevoso. No seu livro, Heróis, Assassínio em Massa e Suicídio, Franco ‘Bifo’ Berardi justifica o seu interesse por esses exemplos de brutalidade espectacular por reconhecer naqueles que a praticam a manifestação extrema de uma das tendências mais chamativas da nossa época: “Neles vejo os heróis de uma época niilista, uma era dominada por uma apavorante estupidez – a do capitalismo financeiro.” No entender deste filósofo italiano, nos nossos dias, o espaço do discurso épico foi ocupado pelas semio-corporações, esses aparatos dos quais emanam as ilusões que ocupam todo o horizonte de aspirações contemporâneas. “Aí reside a origem desta forma de tragédia tardo-moderna, nessa fronteira onde as ilusões são tomadas por realidade e as identidades percebidas como formas genuínas de pertença.” Para Bifo, a raça humana, deixando-se guiar por falsos heróis de enganosa substância electromagnética, perdeu a fé na realidade da vida e dos seus prazeres, e passou a acreditar apenas na infinita multiplicação das imagens. Ele serve-se de uma passagem do livro Os Condenados do Ecrã, em que Hito Steyerl assinala um ponto decisivo nesta transição, recordando o momento em que foi lançado o single Heroes, de David Bowie, em 1977: “Em 1977, a análise da situação iluminada pela banda punk The Stranglers proclama uma obviedade: o heroísmo terminou. Trotsky, Lenine e Shakespeare estão mortos. Enquanto os militantes de esquerda acorrem em massa ao funeral dos membros da Fracção do Exército Vermelho Andreas Baader, Gudrun Ensslin e Jan-Carl Raspe, a capa do álbum dos Stranglers mostra uma gigantesca coroa fúnebre de cravos vermelhos e declara: NÃO MAIS HERÓIS. Nunca mais. Mas também em 1977 David Bowie lança o seu single Heroes. Ele canta um novo tipo de herói, justamente a tempo da revolução neoliberal. O herói morreu, longa vida ao herói! Mas o herói de Bowie já não é um sujeito: é um objecto, uma coisa, uma imagem, um esplêndido fetiche — uma mercadoria imbuída de desejo, ressuscitada para além da miséria do seu próprio fim. Basta olhar para um vídeo de 1977 para perceber porquê: Bowie canta-se a si mesmo a partir de três ângulos simultâneos, com técnicas de sobreposição que triplicam a sua imagem; o herói de Bowie não só foi clonado, como sobretudo tornou-se numa imagem que pode ser reproduzida, multiplicada e copiada, um riff que circula sem esforço em anúncios que promovem quase qualquer coisa, um fetiche que embala como produto a glamourosa e impassível imagem de um Bowie para além dos dois géneros. O herói de Bowie já não é um ser humano maior que a vida, a cumprir missões sensacionais e exemplares; nem sequer é um ícone, mas um produto resplandecente dotado de beleza pós-humana: uma imagem e nada mais que uma imagem. A imortalidade deste herói já não provém da sua força para sobreviver a qualquer prova, mas da sua capacidade de ser fotocopiado, reciclado e reencarnado. A destruição alterará a sua forma e aparência, mas a sua substância permanecerá intacta. A imortalidade da coisa é a sua finitude, não a sua eternidade.” Face a este fenómeno seria possível identificar hoje um existencialismo de natureza puramente publicitária. Se ontem este nascia da náusea, e o homem lançado ao mundo era forçado a reconhecer-se livre, responsável, sem desculpa. Hoje, essa náusea foi estetizada, reciclada, convertida em branding. O que resta do ser não é o abismo da liberdade, mas a superfície brilhante do cartaz. Cada sujeito, em vez de se saber condenado à liberdade, descobre-se condenado à visibilidade. A nova metafísica é publicitária. A vida não se projecta — promove-se. O projecto sartriano, essa construção singular que respondia à contingência, converteu-se em storytelling padronizado. Já não me invento no risco de cada gesto, mas no algoritmo que recolhe e redistribui os meus gestos em equivalências de consumo. A angústia? Foi substituída pela ansiedade de não ser suficientemente visível, suficientemente performativo, suficientemente "autêntico" na vitrina universal. O inferno já não são os outros: é o feed. Um espaço onde o ser-para-outro já não é dialéctica mas estatística. Cada like é uma transcendência mínima, um micro-salto ontológico que me arranca por segundos à minha insignificância. A má-fé, outrora mecanismo subtil de fuga, é agora princípio estrutural. Viver é representar uma marca, e negar esse estatuto é apenas confirmar-se como produto de nicho. O homem publicitário não mente a si mesmo: ele é a própria mentira organizada, sistemática, estetizada. Que fazer diante deste deserto saturado de signos? Se em Sartre a liberdade exigia comprometer-se, aqui exige desaparição, opacidade, silêncio. Talvez a única resistência seja um existencialismo clandestino, sem campanhas nem slogans, uma vida que se furta à estetização total. Existir como quem sabota um anúncio: rasgando o cartaz, borrando o ecrã, recusando o brilho do próprio reflexo.
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    3:52:52

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About Enterrados no Jardim

Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
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