Transclasse: A dificuldade de sair do lugar | Kályton
Vidas paralisadas por não conseguirem se mover. O impasse nasce do choque entre a origem e a nova posição social. Sai-se da pobreza, mas a pobreza não sai da pessoa, e é justamente isso que impede de seguir adiante. O termo transclasse foi formulado pela filósofa francesa Chantal Jaquet em sua obra Les transclasses ou la non-reproduction (2014). Jaquet descreve o movimento de sujeitos que atravessam as fronteiras de classe sem repetir o destino social herdado, enfatizando as nuances entre ruptura e continuidade, entre herança e reinvenção. Ela parte do contexto francês, marcado por políticas públicas mais sólidas e por uma tradição de reflexão filosófica sobre desigualdade e reprodução social.Entretanto, quando deslocamos o termo para o Brasil, a simples tradução não dá conta da densidade do fenômeno. Nossa realidade está atravessada por desigualdades históricas, raciais e estruturais de herança escravista, onde a travessia de classe não é apenas uma não-reprodução, mas carrega marcas traumáticas que se inscrevem no corpo e no inconsciente. É aí que se evidencia a diferença entre pensar o conceito europeu e o brasileiro.Se na França a ênfase está no desvio das determinações de classe, no Brasil a ascensão implica lidar com feridas psíquicas e sociais que não se apagam com a mudança de renda ou escolaridade. O que se chama de transclasse em Jaquet toca apenas a superfície do que nomeio como Trauma da Pobreza. Minha teoria nasce dessa realidade específica: a pobreza como inscrição subjetiva que permanece mesmo quando o sujeito já não é mais pobre. Mais do que um deslocamento social, trata-se de um atravessamento psíquico que exige elaboração para que não se repita em forma de sintomas, angústias e medos, sobretudo o medo da queda.O termo transclasse, dialoga profundamente com o espírito do nosso tempo. A ideia de que o sujeito pode “transicionar” de classe sugere que basta não se identificar mais com a origem para dissolver os conflitos da travessia social. O problema é que essa perspectiva reduz a complexidade do sofrimento a uma questão de identificação imaginária, como se bastasse mudar o espelho em que o sujeito se olha para a ferida desaparecer.Essa crítica é fundamental, sobretudo no Brasil, onde a mobilidade social não se resume a identificações, mas se confronta com desigualdades históricas, raciais e estruturais. O Trauma da Pobreza que elaboro não é apenas a descrição de uma travessia, mas a nomeação da marca psíquica que permanece inscrita mesmo quando o sujeito já não ocupa materialmente a posição da pobreza. Não se trata de mudar de bairro, país ou escola, transformações que sempre exigem algum nível de adaptação. Trata-se de uma especificidade: a pobreza deixa resíduos que não desaparecem com o aumento da renda ou a conquista do diploma.O Trauma da Pobreza é importante, pois trata-se do meu esforço conceitual para pensar a mobilidade social a partir do sofrimento da ascensão social. Tal conflito não se explica pela simples mudança de lugar, mas pelo trauma que a pobreza inscreve na subjetividade. É essa a minha marca autoral, frequentemente invisibilizada e até apropriada por criadores de conteúdo que recorrem a autores franceses como se fossem credenciais de legitimidade intelectual. Enquanto isso, eu, um intelectual brasileiro, nomeei o indizível: o sofrimento psíquico específico da ascensão social. E a pergunta que ecoa é simples: por que um brasileiro, que ousou explicar o problema, insiste em ser apagado?